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  • Maedra

As Cartas da Avó Lola

Atualizado: 17 de ago. de 2023

Obrigada Paola por teres vindo até cá. Foi bom termos bebido aquele café prometido há séculos! Gosto de estar contigo e falarmos de tudo e mais um par de botas. Gosto do teu sorriso franco, do olhar matreiro, da tua força! Gosto de ser tua Amiga, fazes-me bem! Puxas o meu Eu e acordas a minha essência!


E ainda bem, pois se cá não estivesses, teria ficado muito mais pensativa e estupefacta do que fiquei. Quando te foste embora e enquanto esperava que me viessem buscar, entrou uma mulher, aí de 80 anos, acompanhada pela filha. Chorava e senti que estava assustada. A filha tentava acalmá-la mas estava desesperada.


E perguntas-me tu – Então e qual é a história?


É simples e dramática, como a maior parte dos acontecimentos com seniores institucionalizados. Maria estava num outro lar mais pequeno, cujos donos eram “dois doutores”, não sabem de que área era a doutorice, mas sabem que eram doutores e faziam questão de o mencionar, talvez pela disparidade da situação. Não percebiam porque os doutores permitiam que alimentação no Lar fosse dada daquela maneira!


À noite, ao fim-de-semana, muitas vezes comia-se apenas canja. Como era uma canja reforçada com galinha, cenoura e ovo, chegava. O pior era quem não gostava de canja ou era de mais alimento e a canja pedia mais qualquer coisa. Mas o pior mesmo era quando a Maria sofria de “ou engoles, ou engoles”. Com muita dificuldade motora para pegar nos talheres e levar os alimentos à boca, Maria necessitava de apoio para comer. Várias vezes ficou engasgada e quase a sufocar. Não foram poucas as vezes que quem lhe dava de comer, colocava uma mão na nuca e a empurrava para a frente para a obrigar a comer ou lhe torcia a ponta da orelha, sem que ninguém visse. Maria sentia total impotência perante estas situações. Demorou demasiado tempo até contar tudo à filha. Tinha medo que esta não acreditasse e pensasse como muitos filhos:


- Que estaria a demenciar, que era tudo da sua cabeça, que já não estava lá muito bem e inventava coisas, que apenas estava a chamar a atenção, que sempre tinha tido mau feitio e agora tinha embirrado com uma qualquer funcionária, ou pior, que agradecesse por a obrigarem a comer, como tinha visto muita família a fazer ingenuamente e com muito pouco amor.

Até que se decidiu e contou à filha. Felizmente acreditou e agiu. Retirou-a de lá e colocou-a aqui. Ainda esperou algum tempo mas já cá está!


Por aqui nunca vi nada parecido, apenas pouca paciência para quem não quer comer. Não insistem muito e nota-se que também não há trabalho dos técnicos para ensinarem as estratégias necessárias para que se coma quase sem se dar por isso, nem há grande vontade em mudar os alimentos e nenhuma sabedoria para lidar com seniores portadores de demência.


É incrível como as funcionárias ainda se melindram e zangam quando pessoas com demência, referem que ainda não comeram, logo a seguir a tomarem uma refeição completa! É incrível como falam com estas pessoas como se elas estivessem a mentir e por consequência a culpá-las porque não lhes deram de comer. Porque será tão difícil perceber que se está simplesmente doente? Que o esquecimento ou o estado de confusão faz parte de determinado tipo de doenças mentais?

Enfim, a Maria por agora está mais descansada, talvez seja acordada às 6h30 da manhã, mas pelo menos vai comer bem e ao domingo há muito mais do que uma canja reforçada.


Regina Lourenço

Assistente Social - Academia de Empreendedorismo em Serviço Social

Supervisão Profissional em Serviço Social na área do Envelhecimento e Empoderamento Profissional



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